“Chorei quando vi que muitas dessas vítimas eram pessoas que ajudei a colocar as malas no navio”

Na manhã daquela sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020, centenas de pessoas se aglomeravam no conhecido ‘Porto do Grego’, localizado na área portuária de Santana, onde muitos apenas estavam por se despedir de seus parentes, onde muitos seguiam com destino ao Estado vizinho do Pará. De acordo com informações, o destino final era o município paraense de Santarém, uma viagem fluvial que duraria em torno de 18h a 26h (no máximo). 
 
O tempo parecia favorável naquele momento e possivelmente não previa futuras mudanças climáticas durante a longa viagem. 
 
Pelo menos essas são algumas informações que o carregador de portos – como assim gosta de ser chamado – o senhor João Maria Sampaio, de 45 anos, que atua prestando serviço independente na região portuária de Santana (AP). 
 
Sampaio (que já é conhecido por muitos como disposto prestador de bagagens e até orientador de endereços para aqueles de semanalmente desembarcam) no Amapá através do porto de Santana, conversou um pouco com nossa reportagem e falou de seu tempo de serviço, muitas vezes divididos entre a segunda maior cidade amapaense e a cidade de Breves (PA), de onde veio com a família há quase duas décadas. 
 
“Antes de vim pra cá (para o Amapá), me criei na beira de rio e vi muita coisa, mas também tem muita coisa que só ver aqui”, disse no início de nossa conversa.
 
Quando se relata sobre fatos nunca vistos em outros lugares, Sampaio conta que nunca imaginaria testemunhar uma partida de navio que horas depois se tornaria uma triste notícia a nível nacional.
 
“Nesse dia (do naufrágio) parecia um dia qualquer. Uma movimentação de pessoas para embarcar que só começou por volta das dez horas da manhã. Vi que muitos ainda pensaram em desistir, mas haviam insistência de parentes para viajarem, por que não podiam perder compromissos”, lembra.
 
Sobre a embarcação (principal protagonista desse trágico episódio do fatídico), Sampaio disse que vários produtos já vinham sendo colocados na interna do navio, horas antes de deixar o porto.
 
“Soube pela TV que o navio levava muitas toneladas de fardos de mercadorias (eram açúcar, farinha e outros), eu realmente cheguei a ver alguns fardos sendo colocados dentro dele, mas não pareciam ser tantos vi em imagens, acredito que muito material deva ter embarcado tempo depois da saída”, enfatiza.
 
Mas haviam muitas pessoas que embarcaram? O profissional do porto responde que o número de passageiros parecia condizer com o limite permitido para aquela viagem.
 
“Até hoje dizem que haviam quase 130 ou 140 passageiros que viajaram nesse dias, mas vi que não passavam 50 ou 60. Isso sem contar a tripulação que deveria ser outros dez ou mais”, calcula.
 
Entre uma das lembranças marcantes daquele dia (considerado os últimos momentos antes de deixar o porto de Santana), Sampaio conta que alguns passageiros chegavam ao local e logo precisavam de apoio para que suas bagagens fossem levadas até o navio, devido não terem quem pudessem lhes ajudar.
 
“Tinham pessoas que chegavam com uma ou duas malas e davam conta de levar sozinhos, já outros vinham com 5 a 7 malas e ainda traziam filhos pequenos (na faixa etária de 8-9 anos), e esses pediam nossa ajudar para carregar as malas. Nunca passaria na minha cabeça que aquela seria a última viagem para muitos deles”, considerou.
 
O sorriso de esperança promissora e a educação de uma mulher (passageira naquela viagem) se tornou um marco para Sampaio, que a descreveu de modo parecer conhece-la há um longo tempo.
 
“Carreguei malas para uns seis passageiros que embarcaram no Anna Karoline, mas lembro dessa senhora que foi educada do momento que pediu para ajuda-la até colocar a bagagem na entrada no navio. Ela contava que iria visitar sua irmã e ajuda-la a montar um negócio próprio, se caso desse certo iriam ampliar o negócio aqui para o Amapá. Mas”,detalhou.
 
A emoção lhe tomaria conta em lembrar que dessas pessoas que enxergou a embarcar, três reconheceu quando a notícia do naufrágio logo começou a repercutir, 24 horas após as primeiras informações virem através de relatos de ribeirinhos.
 
“No sábado a tarde já chegava pessoas no porto querendo informações, mas ninguém sabia de muita coisa. Fui vendo pela TV as fotos de pessoas que estavam desaparecidas e não me aguentei e comecei a chorar. Fiquei comigo pensando que vi muitas delas do meu lado, onde carreguei suas malas e agora estavam mortas. Uma situação muito triste de até lembrar”, lamentou.
 
Naufrágio
A tragédia do navio Anna Karoline III aconteceu na madrugada do dia 29 de fevereiro de 2020, numa região de difícil acesso, quando estaria reabastecendo de maneira clandestina.
 
O excesso de peso (contendo 70% acima do peso permitido) e diversas outras irregulares constatadas durante as investigações levaram a justiça do Amapá a indiciar seis pessoas (entre a tripulação e até marinheiros), apontados como principais causadores que culminou na morte de 42 mortes e deixou 51 sobreviventes.
 
A embarcação ficou no fundo do rio por quase um mês, sendo retirado após uma intensa força-tarefa ter sido realizada, contando até mesmo com uma draga de grande porte (contratada de uma empresa que presta serviços portuários) que custou quase R$ 2,4 milhões para emergir novamente o navio do fundo do rio.
 
O processo ainda tramita na justiça amapaense.





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